A abismal poça do desconhecido
Era um meio de tarde ensolarado de outono. Duas belas nuvens brancas refletiam a luz do sol e Fréderic, Harold e Mohamed descansavam no meio fio, bebericando refrigerantes em garrafas de meio litro, sentindo os músculos das pernas suspirarem após uma longa sessão de manobras de skate. Nenhum deles falava, suas respirações voltavam lentamente ao normal, as gotas de suór ainda corriam pelas suas testas e pescoços rapidamente e nada poderia tirá-los daquela atmosfera de juventude conquistada.
A não ser claro que passasse Joceline pela rua, balançando os cabelos ruivos presos num rabo de cavalo, enquanto levava sua cadelinha para passear, metida num conjunto de academia que fazia sua bunda ficar ainda mais empinada do que o normal. Ela era um sonho que atravessava todas as noites os corredores sudorentos daqueles adolescentes espinhentos, que toda vez que a viam, concentravam todas as suas energias em admirar o mais belo presente divino que aquela rua já havia visto.
De longe, Joceline notou seus olhares sedentos e fez como se não visse, como sempre fazia e levantou a cabeça, busto para frente, barriga pra dentro e caminhou ainda mais alegre, um pouco mais solta. Seu cachorro notou e esticou a coleira até que conseguiu alcançar uma poça de água na sua frente. Houve um pequeno problema na noite anterior com algum cano e formou-se uma poça enorme na rua. Não era algo que pudesse ser resolvido rapidamente, mas seria bom se fosse, porque assim que o cachorrinho se aproximou para bebericar um pouco daquela água quase cristalina, um tentáculo vermelho rubro saiu da poça e apanhou o cachorro levantando-o mais de três metros de altura.
Aquilo pegou todos de surpresa, mas ainda mais Joceline que não tinha força suficiente para empurrar o cachorro de volta e foi forçada a soltar cada vez mais a corda da coleira. Os três meninos deram um salto e se entreolharam. O que fazer? Salvar o cachorro é óbvio, quem sabe não ganhariam algo em troca da belíssima Joceline? Mas assim que se levantaram, o tentáculo entrou na poça novamente, levando consigo o cachorro. Joceline começava a chorar enquanto gritava e a corda era puxada com violência para dentro da poça d’água.
Os meninos correram em sua direção. Fréderic pediu calma, Harold segurava a corda, mas foi Mohamed quem teve a melhor ideia: começou a enrolar a corda ao redor de sua cintura e passou a girar em volta de si mesmo, fazendo com que a corda voltasse para cima. A força dos tentáculos era imensa, mas nada que um adolescente de 1,80m e 100kg não pudesse deter com todo o peso de seu corpo. Harold e Simon se juntaram ao amigo e começaram a se enrolar na corda também. Agora eram quase 300kg juntos empurrando o cachorro para cima que saiu da poça ganindo feito um filhote desmamado, mas ainda sofrendo a pressão de um tentáculo que mudara de cor para um vinho imponente.
Joceline fez o que podia. Enfiou a mão na bolsinha que carregava em torno do ombro esquerdo e tirou de lá um spray de pimenta que descarregou com toda o ódio do mundo no tentáculo. Ela não sabia, mas os tentáculos de polvos (e krakens extra-dimensionais também) são altamente sensíveis, contendo mais de 8000 pontos sensoriais, o que faz com que eles desenvolvam algo como uma hiper-consciência, atenta a tudo que os cerca de todos os lados. O spray de pimenta, descarregado quase completamente em seu tentáculo fez com que ele soltasse o cachorro instavelmente e urrasse de dor, o que foi notado pelos humanos na calçada apenas pela profusão de bolhas que saltaram na superfície da poça, como se a água ali dentro estivesse fervendo.
O tentáculo se chacoalhou de um lado para o outro e depois bateu com força no chão do lado oposto onde os humanos estavam. Quase instantaneamente se levantou novamente e ia se jogando para cima dos pedestres, mas eles abriram espaço, deixando o tentáculo bater com força no asfalto, amassando a placa de aviso que o serviço de reformas urbanas havia deixado ali.
O tentáculo se levantou mais uma vez, jogando-se agora contra um conjunto de vasos dispostos na parede de uma das casas da rua; a principal afetada pelo vazamento da noite anterior.
— Que pecado! — comentou Joceline ao ver as rosas serem amassadas.
No entanto, os espinhos das rosas afundaram com força no tentáculo, que mais uma vez se chacoalhou e se levantou, ponderando se atacava mais ou não. Fréderic havia corrido até o seu skate, mas mudou de ideia ao ver sua mochila largada entreaberta no chão. Apanhou o que sobrava dos refrigerantes, jogou as garrafas para seus amigos e mandou que jogassem no polvo. Disso Fréderic sabia, polvos reagiam mal às substâncias tóxicas que os humanos adoravam beber e não foi diferente com aquele kraken extra-dimensional. Ao sentir os refrigerantes espumarem e chiarem em sua pele oleosa e borrachuda, se levantou mais uma vez. Uma profusão de bolhas ainda maior encheu a poça d’água e só então ele voltou para dentro dela. Deixando uma série de ondas chacoalhando a água da poça e um grupo de humanos bufando, cansados e surpresos com aquela aventura improvável.
Joceline pediu calma e com a cadelinha nos braços saiu correndo, dizendo para eles esperarem ela ali. Não demorou muito e ela voltou com três baldes, um rodinho, dois esfregões e um monte de panos de chão, dizendo para eles ajudarem ela. E juntos, os quatro começaram a se movimentar ao redor da poça, procurando secar o mais rápido possível toda aquela água ali.
Quando não sobrava quase mais nada, enfim descansaram e se entreolharam e Joceline agradeceu, tomando para si todo o equipamento que havia levado até lá e saiu tão rápido quanto apareceu na rua. Os meninos se entreolharam uma última vez antes de se despedirem. Prometeram nunca mais tocar no assunto outra vez, mas no dia seguinte, ao se reunirem naquela rua novamente, conversaram sobre o que viram, como se tudo não passasse de um sonho ruim.