[N]euro(devir)GENTE
É o último dia do campeonato, eu tô na final, é só não deixar ele levar pra guarda, o Túlio é mestre nisso, em levar pra guarda. É só não deixar ele te levar pra guarda. Entendi, sensei. Pode deixar, eu não vou deixar ele levar pra guarda, não.
Acorda, Matteo. Você vai se atrasar pra escola.
Eu não quero ir pra escola hoje.
Porque não?
…
Você sabe as regras. Eu também não gosto de escola. Se me der um bom motivo, você não vai pra escola.
…
Vamos, Matteo. A mamãe falou pra você me levar pra escola hoje!
Eu não quero mais ir pra escola. Eu não quero mais ir nunca mais! Não importa o que a mamãe disse. Não é da sua conta, Manu. Vamos, eu te levo, dane-se. O metrô é no final da avenida, a mamãe me deu 2 croissants frescos pra eu levar pro recreio hoje, só que não é mais recreio, é intervalo e tem tênis de mesa todo dia. Eu faço filinha, ninguém me vence, o que é esse tal de talento que todo mundo fala? Eu não sei e nem quero mais saber. Tem algo que me incomoda, Manu, eu não sei o que é, só sei que me incomoda, tá doendo.
Ei, pai, você acha que eu posso dirigir o carro?
Ele me olhou por um tempão. Eu sabia que ele ia dizer não, mas não queria me dizer assim, na cara dura, entende?
E como você se sentiu, Matteo?
Eu não sei, Juliana. Me incomoda um pouco. Eu não queria dirigir o carro, muito menos bater ele, não era o que eu queria, ainda mais porque agora a gente vai ter que pegar o metrô pra ir pro campeonato no domingo e seria melhor ir todo mundo junto no carro. Eu acabei estragando tudo. A Manu ganhou ontem no tênis, impecável, todas no segundo set, ela me olha da arquibancada. Tem os cabelos enrolados, iguaizinhos aos da Manu, mas ela tem um cheiro de… não sei o que. É tão inusitado o cheiro dela, que me faz sorrir, mesmo quando eu não quero. Mesmo quando dói.
O que aconteceu, Matteo? Eu nunca te vi perder no ping-pong.
Tênis de mesa, eu corrigi. Ping-pong é pejorativo.
Pejorativo pra quem?
Eu nunca te vi tirar menos que 9 em física, Matteo.
Eu sei, professor, desculpa.
Não tem do que se desculpar. Eu só queria saber porque.
E foi legal o passeio?
Foi sim, Juliana. O Zanin é o professor mais legal. Nós vimos um monte de coisas legais. Tinham uns experimentos muito maneiros lá. Tinha um de estática, que usava um pedaço enorme de couro e umas descargas elétricas eram jorradas em cima dele e ficava meio queimado, com um cheiro forte, curioso, igualzinho o dela.
Essa é a Lúcia, ela está se mudando para Seasontown hoje, disse o Zanin no primeiro dia de aula do segundo semestre. Eu fiquei hipnotizado nas ondas que o cabelo dela formava. Nem mesmo o mar fica tão bonito assim. Nem mesmo o mar tem tanta graça. O Luiz, o Pato e o Fred pulavam e se divertiam, era o dia mais quente do ano e eu só queria ficar sentado na praia, olhando para eles, mas não era pra eles, era para as ondas do mar. Já estava bem de noite, a gente tinha ficado embaixo do ar condicionado da casa do Fred o dia todo, jogando video-game. Eu não venci ninguém e nem queria, não dava pra me concentrar. Meu personagem favorito é o Liu Kang. Quem gosta do Liu Kang? Eu gosto.
Você gosta de quem?
Eu não jogo, na verdade. Só juntei um monte de roupa lá em casa e vim. Fiquei parecendo com quem?
Com a Sonia Blade, do Mortal Kombat.
Você é engraçado, Matteo. Quer dançar?
Foi a primeira vez que você dançou com uma garota? Fiz que sim com a cabeça. Espera só até ver a verdadeira primeira vez, meu mano!
Eu não entendi o que o Fred quis dizer na festa de Halloween. Mas eu acho que entendi no final do ano. Era a última festa antes do natal e eu acompanhei ela até em casa. Ela tava tão bonita naquele vestido verde. Seu cabelo tinha um leve cheiro de couro com toques amaciados.
O teste de dureza Shore é muito usado pra avaliar a maciez de um material. Mas ele não avalia de 0 a 1 ou de 0 a 100, como é de se esperar. Ele vai de Shore A a Shore D. Isso aí é um indentador.
Que legal!
Sim, eu sempre venho na Bienal de Ciências por causa disso. A gente vê umas coisas muito nichadas, mas aqui fica disponível pra gente testar como quiser.
Eu gosto de testar as coisas, professor.
Eu sei. Sua inteligência é diferente.
…
Nunca deixem que te digam que você não é inteligente. Minha mãe estava sentada do meu lado, enquanto dizia isso. E eu chorava, porque não queria que me chamassem de burro na escola. Porque eu tinha que ir pra escola? Porque o juiz não deixava eu estudar em casa como meus irmãos? Nem mesmo minha mãe entendia e ela era a pessoa mais inteligente que eu conhecia. Mas não durou muito. Todo mundo começou a gostar de mim quando eu entrei pro time de basquete da escola, eu era bom naquilo, mas sei lá.
…
Ele me levou pra guarda. Droga!
Não posso deixar ele pontuar. Mas o basquete tem tantos pontos que é até difícil de acompanhar. O tênis de mesa tem poucos pontos, mas é tudo tão rápido que é difícil de acompanhar também. E no tênis então? Cada ponto vale 15. Eu nunca vou entender isso. No jiu jitsu é por posição, um ponto pra cada e dá pra pontuar de tudo que é jeito, mas eu não ligo mais tanto pra isso.
E aí, pontuou?
Eu não gosto quando o Fred fala desse jeito comigo, com aquele sorriso sacana. Eu nem sei o que é sacana, mas quando eu olho pro sorriso dele, quando ele tá falando de mulher e sexo e festas é desse jeito que ele olha, que ele sorri e eu odeio isso, não sei porque, mas odeio. Sim, eu beijei ela e o que ele tem a ver com isso? Ou será que foi ela que me beijou? Eu acompanhei ela até em casa, ela estava linda naquele vestido verde. Fazia calor pra caramba, era a última festa antes do encerramento do ano na escola. Eu a acompanhei até o apartamento dela e o Fred disse que eu tinha que agarrar ela pelo pescoço, mas não explicou o que eu tinha que fazer depois. Eu a olhei, estava com minha mão na nuca dela e ela tinha os olhos escuros arregalados, com medo. Então ela começou a rir e eu não soube o que fazer, então ri junto, mas eu não estava com vontade de rir.
Assim como eu não tô com vontade de rir agora.
Mas você tirou dez na prova, cara! Olha isso, passou de ano no terceiro bimestre. Você é um gênio!
E daí, Luiz?
O Luiz me olhou como se eu tivesse xingado ele. E me deixou ir pra casa sozinho, mas eu ouvi ele gritar que ele é meu amigo e eu podia contar sempre com ele. Eu sei que ele é meu amigo, mas o Fred também era. E quem vive de passado é museu. A Bienal de Ciências é sempre no Museu Municipal de Seasontown, que fica no centro, num prédio gigante e todo espelhado, nem parece um museu direito. Quando eu cheguei lá fazia 5 graus, o dia estava horrível, escuro e ventava, mas o Zanin me esperava do lado de fora, todo empacotado com umas 3 blusas diferentes, embaixo de um sobretudo preto. Daquele jeito ele parecia ainda mais um pinguim e quando ele começou a andar na minha direção, meio manco por conta da perna ruim dele, eu não pude deixar de rir um pouco.
Tá rindo do que, moleque?
Nada não, professor.
Vamos lá. E entramos no museu. A Bienal acontecia no segundo e terceiro andar. Estavam cheios de experimentos diferentes, um monte de coisa com tecnologia, uns raios, passamos o dia inteiro lá. Quando saímos já era quase noite, mas as nuvens tinham ido embora e não ventava mais, continuava frio pra caramba, mas tava bom. Fomos jantar num restaurante ali perto, bem caro e bem chique, mas o Zanin pagou tudo e a gente conversou um monte. Eu falei da Lúcia e ele disse que aquilo era normal, que o mar é cheio de peixe e o que isso tem a ver com a história? Eu sei que o mar é cheio de peixe, é o mar, poxa!
Desculpa, eu me expressei mal. Eu quis dizer que tem muitas garotas por aí, Matteo. Ela foi a primeira e você nunca vai esquecer dela, assim como eu nunca esqueci da minha primeira, mas vai passar, eu te garanto. Com certeza vai demorar, eu sei disso, porque nós dois somos muito parecidos. Nós tendemos a nos dar melhor com números do que com palavras e os números não expressam muito bem os sentimentos. Mas vai passar.
E é a minha única chance de passar pra guarda. É agora ou nunca! Eu giro o corpo por cima dele, finco meus pés no chão e com toda a força que me resta, eu levanto ele no ar e giro meu corpo. É agora ou nunca!
Fácil dessa forma?
Não foi fácil, mas foi assim que deu pra tirar ele daquela defesa irritante.
Eu fiquei irritado a semana inteira, cara! Você sabia que eu gostava dela!
Ela disse que não queria nada contigo, não é? Podia ter sido pior, podia ter sido um babaca qualquer. Pelo menos sou eu, teu amigo.
E aí o Luiz, falou, ainda bem, porque eu já não conseguia falar nada por cima das lágrimas:
Amigo não faz isso, mano.
Ela disse o quê?
Que não queria namorar. E a Juliana me olhou como se tivesse pena. Eu já vi esse olhar outras vezes. Estampado em muitos médicos, estampado nos meus pais, estampado nos meus irmãos. Muita gente teve pena de mim, em vários momentos, mas nunca por algo que se passava longe da minha cabeça. Meu problema sempre foi minha cabeça, meu raciocínio, mas dessa vez, o problema era outra coisa, era meu coração mesmo.
E ao levantar o Túlio, eu lembro de quando fiz a mesma coisa com o Fred. Não me arrependo do que eu fiz. Assim como não posso parar o que faço. Levo meu braço em torno do pescoço dele, antes que ele consiga encolher a cabeça junto do kimono e com o outro braço levanto o braço dele. É uma confusão, mas é uma confusão boa. Uma confusão que faz todo mundo sentir orgulho de mim e não aquela confusão que aconteceu no intervalo da escola, depois que eu chorei, depois que ele gritou comigo, depois que eu senti meu coração bater na garganta e parti pra cima, sem dó nem piedade. Ninguém pode me deter agora e ninguém podia me deter então. Eu escuto as três batidas no chão e solto ele. Primeiro eu solto o Túlio e depois me levanto, olho ao redor, me perco no meio dos olhares, aplausos e gritos de todos. Eu respiro profundamente e sinto cada músculo suspirar, enquanto o chão some sob meus pés. O ar sobe pelos meus pulmões e jorra pelas minhas narinas, enquanto gotas de suór escorrem pela minha cabeça. Meu mundo particular me envolve, seguindo o ritmo de meu coração. Agora, estou bem.
esse desenho ficou doido, bro