Leite de macho
Do alto mato amarelado que crescia seco naquele início de primavera três gatos pularam, com olhos arregalados e movimentos ritmados em direção a porta de madeira que abriu bruscamente após emperrar mais uma vez no batente. Geovanna teve que empurrá-la com o ombro para abrir e deixar os potinhos de comida do lado da porta. Resmungou, mas sorriu ao ver os gatos se juntarem para comer seu café-da-manhã. Quando ouviu os passos do marido de dentro da casa, seu sorriso se foi e ela voltou para onde vinha o som. Albuquerque entrou na cozinha e disse um “bom dia” tão breve quanto o jogo das finais de tênis de ontem. Ela respondeu tão seca quanto os cortes do adversário e ambos prepararam seus cafés, lado a lado, sem toques.
— Ele não vai se levantar, Al.
— Vai sim. Foi só um jogo.
— Eu sei, mas não é o que ele acha.
— Hoje é domingo, pé de cachimbo e eu quero ficar sossegado…
— Não começa com gracinhas! Nosso filho perdeu um jogo de tênis idiota e por culpa dessa competitividade idiota que você colocou na cabeça dele, o menino quebrou duas raquetes, levou penalidade da federação e não saiu do quarto a noite toda ontem, nem pra jantar!
— Então a culpa é minha, é?
— E de onde mais ele tirou essa competitividade toda?
— Competitividade? O que você sabe de competitividade, senhora perfeição? Competir é saber perder também. Não sou eu quem passa a mão na cabeça dele toda vez que dá chilique em quadra!
— Chilique? É assim que você fala do seu filho?
O som de uma cadeira se arrastando no chão interrompe a discussão e juntos eles viram o rosto para descobrir Manu, subindo numa cadeira para alcançar a prateleira de canecas. Ela se vira quando tudo fica em silêncio e diz:
— Podem continuar. Só vou fazer meu leite.
Geovanna encara brava o marido e joga a chaleira com força em cima do fogão. Em silêncio, ela começa a apanhar os itens para o café. Albuquerque, por sua vez, pergunta o que a filha quer, um omelete, um sanduíche e ela, vendo-o já apanhar um enorme pão italiano, escolhe a segunda opção. E a segunda opção também é a de Matteo, que entra sorridente, cantarolante e quase gritando na cozinha:
— O Benja pediu pra avisar que não vai pra missa hoje!
— Fala baixo, Matteo — avisou o pai — E não chama assim o seu irmão.
Geovanna encara o marido, enquanto a chaleira começa a chiar. Albuquerque, que havia acabado de passar manteiga em duas fatias de pão, pergunta com o olhar o que ela queria. Matteo pergunta o que Manu está fazendo e ela responde “chocolate”. A frigideira esquenta e quando Geovana tira a chaleira do fogão, as fatias de pão chiam ao serem jogadas no metal. Matteo pondera qual leite usar, coçando o queixo e olhando para as árvores do lado de fora, balançando forte com o vento. Após um esbarrão no marido, Geovanna diz:
— Você devia ir lá acordar ele.
— Posso saber por quê?
Geovanna o encara com seus olhos verdes vivos. Do outro lado do ringue, os olhos escuros de Albuquerque aguardam o movimento adversário. Ela bate a ponta dos dedos de forma impaciente contra o mármore da pia. Ele afunda o pão na frigideira com uma espátula de plástico aumentando o chiado. Matteo escolhe leite de cabra e caminha para a geladeira. Geovanna joga, ou melhor, atira o suporte de madeira para panelas na mesa e deixa a chaleira ali. Ela apanha o queijo e pergunta se ele vai usar. O marido responde que sim e ela lança o pacote de queijo na pia. Matteo pergunta para o ar onde está o whey. Ninguém responde. Há uma guerra sendo travada, mas só Manu se deu conta disso, como espectadora.
— E você vai usar peito de peru, presunto…? — pergunta Geovanna.
Sua paciência é superficial e todos entenderam isso, menos Matteo, que após achar o whey, pergunta onde está o mel.
— Eu não sei… o que você vai querer, Manu?
A pobre garota quase engasga e responde de supetão:
— Qualquer coisa tá bom!
Albuquerque tira da mão da esposa o pacote de peito de peru. É o favorito dele, mas joga no meio uma fatia de presunto. Tudo embalado pelo queijo e ainda salpicado com um pouco de salsinha e colocado entre as duas fatias gigantes de pão que ele havia cortado. O prato está pronto e é cortado na frente da filha, que sorri enquanto saliva, esquecendo-se completamente que estava num campo de batalha.
— Eu também quero! Eu também quero! Igualzinho, pai! — Matteo grita.
Albuquerque sorri e Geovanna o lembra em que pé eles estão:
— Você é um rato ou um homem?
Aquela foi a bomba que abriu um clarão na cozinha e criou um momento de silêncio, o qual caiu levemente numa estática calorosa. Era a velha fórmula que Albuquerque sempre falou para os filhos, parte brincadeira, parte verdade. Geovanna nunca gostou desse jogo de palavras machistas e no último ano usava e abusava da fórmula para expor todas as fraquezas do marido num jogo sádico que ela não só aprendeu a jogar, mas aprendeu a dominar muito bem. Albuquerque não tinha resposta, ao menos não uma que pudesse se encaixar numa manhã primaveril de domingo, então engoliu em seco e preparou o lanche de Matteo.
— Será que uma banana vai cair bem no meu leite?
Bianca aparece na cozinha já toda vestida, com um laço violeta na cabeça e um laço azul na mão direita para colocar na cabeça da irmã. E enquanto arruma Manu, pergunta:
— Cade o Benja?
Não só o apelido, mas o tom de voz, eram indicativos de uma provocação a qual ninguém iria dar atenção. Com exceção de Matteo, que desistiu da banana e resolveu arrancar gotas de chocolate de alguns cookies para incrementar o seu leite.
— Está no quarto. Disse que não vai à missa hoje.
— Também depois da vergonha que ele passou ontem…
— Bianca! — alertou Geovanna.
— Que foi, mãe? É verdade. Ainda mais pela Carmen, mãe... É a menina que ele gosta, mas ela gosta é do Jonas e aí o Benja não só perde o jogo na final, por três sets a zero, como ainda perde pro Jonas! Acho que ele não sai da cama por uma semana…
— Cada um tem seu tempo, Bia... — disse Albuquerque.
— É mesmo, Al? — pergunta Geovanna, num tom irônico.
— Sim, é mesmo! — respondeu o marido num tom de voz mais alto — Inclusive eu tenho o meu tempo, que não é muito e é por isso que eu vou lá chamar o meu filho, pra tomar café-da-manhã e ir à missa conosco e eu não quero ver nenhum de vocês perdendo tempo com provocações, estamos entendidos?
Albuquerque olhava para a filha, que não o encarou.
— Bia?
A menina virou o rosto para o pai. Ela deu de ombros e fez que sim com a cabeça.
— Mãe, acha que é uma boa ideia eu fazer uma vitamina pro Benja? — perguntou Matteo — pr’ele recuperar os músculos mais rápido!
Geovanna sorriu por trás da mão que segurava a cabeça.
— Acho. Só não chama ele de Benja.
***
Ainda irritado, Albuquerque foi atrás do filho e não se surpreendeu quando o viu acordado no quarto, mexendo em seu celular. Ao vê-lo, o menino não fez o menor esforço para esconder que estava acordado.
— Eu não vou.
— Eu nem falei nada.
O pai sentou-se na cadeira de escritório ao lado da cama do filho. A janela estava fechada e ele fez questão de abrir. O clarão não incomodou os olhos de Benjamim.
— Olha, ontem foi horrível, filho. Mas hoje é um novo dia.
— Um novo dia para falhar…
— Ou pra acertar, quem é que sabe?
Benjamim suspirou.
— Esse campeonato valia muito, pai… — Albuquerque o observava — Eu treinei tanto, joguei tão bem todos os jogos... Eu sou um fracasso.
— Não é, não.
— É claro, eu sou seu filho, eu sou o milagre que salvou a família, porque a mamãe não podia ter filhos e quando vocês me adotaram eu iluminei a vida de vocês — disse Benjamim num tom irônico — Eu poderia ter crescido sem pai, sem mãe, mas Deus quis que eu fosse adotado por uma família que me ama, me trata bem e faz de tudo pra eu ser alguém na vida. Eu deveria agradecer todos os dias por tudo que já me foi dado, porque tem muita gente com bem menos. Tem algo que eu esqueci de adicionar?
— E você acha pouco? Acha pouco ter uma família que te ama?
Benjamim suspirou.
— É errado eu querer mais? É errado eu querer ganhar um campeonato que vale dinheiro pra ajudar vocês? É errado eu querer uma namorada, por acaso?
Os dois ainda ficaram em silêncio mais um tempo, antes do pai dizer:
— Eu não posso te prometer nada disso. Mas você chegou muito perto ontem, você fez tudo que pode e faltou só um pouquinho. E agora você elevou um pouco o seu ponto de partida. Eu não posso te prometer nada, mas eu sei que você não vai conseguir nada se ficar deitado no quarto o dia todo.
— E se não der, hein?
— Você tenta de novo.
— Isso nunca tem fim, pai.
— E que outra escolha você tem?
Benjamim suspirou. Ele sabia que poderiam continuar naquele assunto para sempre e nada mudaria. Seu pai perguntou se ele iria e o menino apenas balançou a cabeça em concordância. Não demorou muito para trocar de roupa, sair do quarto, lavar o rosto, pentear os cabelos e ir para a cozinha. Apenas sua mãe disse “bom dia”, as irmãs estavam em silêncio e pareciam se esforçar para não encará-lo, mas responderam ao seu “bom dia” sem provocações. Quando ele sentou na mesa, notou que Matteo o encarava, com um sorriso largo no rosto.
— O que é?
— Fiz uma vitamina pra você! Pra recuperar os músculos.
O menino fez questão de mostrar os bíceps e Benjamim encarou a mãe, como se pedisse socorro e ela apenas sorriu, tímida, como se dissesse que o irmão fazia o melhor que podia. Matteo estendeu um copo enorme para o irmão, com um líquido cremoso, num tom pastel amarronzado, pouco convidativo, algumas pedrinhas pareciam flutuar dentro dele e um suave vapor dançava para fora do copo.
— O que temos aqui? — perguntou.
— Leite, chocolate, whey de baunilha, cappuccino caseiro da mamãe, banana, kiwi que você gosta, uma colher de abacate, gotas de chocolate que eu tirei de uns cookies, marshmallows picadinho, geleia de framboesa, mamão, doce de leite, amêndoas batidas, mel, raspas de limão siliciano, tudo batido e esquentado no microondas — respondeu o menino de um fôlego só e após respirar profundamente, falou quase gritando — Isso sim é leite de macho! Você é um homem e não um rato.
Albuquerque cuspiu o café de volta para sua xícara, antes de rir, procurando esconder o rosto para não encarar a mulher. Mas deveria ter feito isso, pois Geovanna sorria para Matteo, quase emocionada, com as bochechas subitamente rosadas e olhos verdes vivos que hasteavam uma bandeira branca no ar.