Feijões congelados
I
Ao ver Geovanna sentada na beirada da cama após meio dia de contagem de estoque, ainda sofrendo com os efeitos do blecaute, com aquele olhar que Albuquerque aprendeu a temer com o passar dos anos, ele respirou profundamente e passou a mão direita em seus cabelos lisos e grossos, penteados num topete jogado para o lado e que, naquele momento, já estava desmanchado e pedindo um banho. Ele deveria ter captado os sinais quando Bianca não foi recebê-lo na porta da casa, a qual estava quieta demais, ele pensava. Benjamim assistia A grande batalha dos guaxinims na TV, mas voltou toda a sua atenção para o pai quando este pisou na sala, apenas a ponta do sapato de couro velho tocava o tapete.
— Oi! — saudou o pai.
— Oi! — saudou Benjamim no mesmo tom de voz.
O menino acompanhou ansioso o olhar sorridente do pai, que atravessou a sala de TV até a sala de jantar, vazia e entrava no corredor mais escuro da casa.
Ele deveria ter percebido que ali estava como a noite, as portas fechadas, exceto a do banheiro, mas sua cabeça estava envolta em números, linhas de planilha e códigos matemáticos. De forma alguma, Albuquerque teria reparado na situação em que estava.
De forma automática, caminhou até o banheiro e lavou o rosto. Ao levantar a cabeça, observou a esposa através do espelho, sentada na cama, analisando as unhas, com aquele olhar, esperando o seu movimento. Ela estava ali antes? Ela não iria tomar a iniciativa e ele sabia disso. Todos eles sabem e se não sabem estão perdidos. Então, Albuquerque se virou, apanhando a toalha, secando o rosto, alisando rapidamente o bigode e parou no batente da porta. Ele se deu um segundo para respirar e olhou para a janela à sua direita. A cortina estava aberta e ele podia ver, a pouco mais de um metro, o muro que separava a sua casa da do vizinho. Mais ao longe, o telhado vermelho e enfim o céu num tom pastel de azul com nuvens arrastadas, como se tivessem sido pintadas com uma espátula.
— Então, o que aconteceu? — perguntou ele, finalmente.
Ela o encarou com os lábios cerrados e aquele olhar, dando um suspiro de alívio como se dissesse finalmente antes de prosseguir com o seu relato do que havia acontecido mais cedo.
II
Tudo havia começado há alguns meses, 3 ou 4, após os Valburgo assistirem, numa tarde preguiçosa de domingo, um filme do Jackie Chan. Bianca, a mais agitada das crianças brincava de socos com o irmão mais velho, enquanto Albuquerque comia uma mexerica no quintal, sentado na mureta que separava o terraço do gramado e fazia calor. Benjamim, enquanto defendia os socos da irmã, comentou que Jackie Chan havia praticado Wushu quando era criança e havia um templo Wushu dentro do Centro Olímpico da cidade. Com as bochechas vermelhas e duas linhas de suór na testa, Bianca implorou junto aos joelhos do pai para que ele a deixasse praticar Wushu. "Vamos ver", foi a resposta de Albuquerque e, de dentro da casa, veio o indignado "O quê?" de Geovanna. Naquela noite, os dois passaram horas conversando na cama. Albuquerque dizia que aquele era um esporte como qualquer outro, só era fantasiado com umas filosofias orientais. Geovanna, que tinha credenciais universitárias e experiência no extremo oriente para discordar disso, dizia que não era apenas um esporte, que a Bianca poderia ser influenciada negativamente por todas aquelas filosofias e eles aprendiam a matar alguém. "300 anos atrás", retrucou Albuquerque. "Eles vivem como se estivessem em 300 anos atrás”, foi o contra-ataque de Geovanna, que ainda insistiu que eles se esforçavam em manter uma tradição que ofendia suas sensibilidades feministas. Mas a prática esportiva era importante para Albuquerque e Geovanna reconhecia isso. Ele já havia matriculado os filhos na natação e futebol, mas eles sempre se entediavam e era a primeira vez que Bianca demonstrava interesse num esporte. Geovanna insistia na ideia de que aquilo não era só um esporte e Albuquerque avançava com seus argumentos, de que o esforço físico fazia bem para a mente, liberava serotononina e endorfina, mas Geovanna já sabia de tudo isso e ele não precisava lembrá-la disso. "Talvez ela nem permaneça por muito tempo lá", disse Albuquerque e ele ouviu "Nós nem sabemos o custo disso", indicando que a discussão já estava encerrada, faltava apenas a formalização. Ele prosseguiu em seus argumentos, como se nem a tivesse ouvido, deixando-a ainda mais enfurecida, com as bochechas cada vez mais vermelhas na meia luz do abajur, o que deixava Albuquerque profundamente encantado. "Se for muito caro, ela não se matricula e pronto. Ela vai entender", disse ele, afinal. Geovanna bufou, apertando a ponta dos dedos e indagou:
— Vamos ver o preço, então?
— Antes de decidir qualquer coisa. — Sorriu Albuquerque.
Ele dormiu tranquilamente naquela noite, mas Geovanna ainda iria beber água na cozinha e rezar para que tudo desse certo.
No dia seguinte, com sua filha do lado, o que aos outros gerava uma visão interessante, pois Bianca era praticamente a cópia da mãe (olhos verdes, cabelos louros e lisos, com uma pele branca que tornava suas extremidades rosadas, mas só Deus sabia o quanto as duas eram diferentes), Geovanna dirigiu até o Centro Olímpico e enquanto aguardava o mestre as atender pensou no quão tranquilo era aquele lugar. Um prédio de madeira que seguia a arquitetura tradicional chinesa, no meio de um enorme terreno no topo de uma colina, com um enorme jardim na entrada, cercado de árvores grandes e trilhas de pedras a perder de vista. Ela mal notou o tempo passar na sala de espera, enquanto ouvia os pássaros cantarem do lado de fora. Para sua surpresa, a mensalidade consistia em apenas 60 woolongs (mais barato que seus livros didáticos) e não teve jeito, teve que matricular a menina quando as inscrições abriram no final de janeiro, muito a contragosto, ainda que admitisse ao marido durante as festas de fim de ano que era até bonito ver a filha se gabando para os primos mais velhos que ela ia aprender a lutar como o Jackie Chan e eles nunca mais iam zoar uma menina na vida.
III
— Eu acho que é melhor você se sentar… — disse Geovanna, endireitando a coluna ao respirar fundo.
— Eu acho que é melhor eu ouvir! — retrucou Albuquerque, do jeito que só Geovanna sabia que não era hostil.
Era a urgência em saber o que ela tinha a dizer. Geovanna encarava aquele tom de voz quase como um elogio.
— Bem, então vamos lá… Você não vai acreditar no que aconteceu hoje. Foi há algumas horas já, mas eu ainda não sei o que fazer, porque não dá pra acreditar. Hoje de manhã, eu atrasei o almoço. Eram mais de 11 da manhã quando eu comecei a esquentar a comida, mas é só porque eu tinha aquela conferência em vídeo com o Dubretsky — Albuquerque odiava atrapalhar o raciocínio da esposa, mas não pôde deixar de estranhar o nome e fazer uma cara indagativa, desviando o olhar para o teto do quarto — Não precisa fazer essa cara! É o russo que vende as obras de arte sacra ortodoxa pro museu. O careca de barba escura! — Albuquerque murmurou em concordância e fez um sinal para que a esposa continuasse. — Enfim, eu já te disse como é insuportável conversar com ele, tanto papo furado que não leva a lugar nenhum e aquele sotaque carregadíssimo. Meus Deus! — Albuquerque abriu um sorriso e descalçou os sapatos. — Tá ali o seu chinelo! Mas enfim, ele ocupou minha manhã toda e eu ainda tinha que buscar as crianças no templo e eu vou te falar, quase deixei o Benji sozinho em casa, porque ele tava lendo um livro e não queria sair, mas consegui fazer ele vir comigo. Dá aqui sua camisa! Eu vou deixar de molho. Pra piorar, o trânsito estava horrível. Desculpa, mas eu não consigo ir por aquele caminho que você me ensinou, as ruas são muito estreitas e é cheio de curvas, então eu peguei a avenida mesmo. Cheguei no Centro atrasada e a Bianca já entrou no carro, reclamando, porque estava com fome, mas o Matteo nem notou que eu estava lá, você sabe como ele é. Quando eu já estava fechando a porta do carro, apareceu o professor deles, dizendo que havia passado uns exercícios para o Matteo praticar em casa e eu perguntei “E a Bianca?”, mas acho que na hora falei Bia, e ele respondeu que não precisava. Ela é adiantada na turma mesmo, mas eu sabia o quanto que isso ia ser irritante, os exercícios do Matteo, porque ele não ouve ninguém, nem ia almoçar, então falei pro professor avisar pra ele praticar só depois do almoço e o professor respondeu que já havia feito isso, que eu podia ficar tranquila e uma boa tarde. Eu agradeci e fui embora… ou melhor, vim, né? Mas o trânsito estava ainda pior na volta. E a Bianca reclamando e o Benji irritado do meu lado e o Matteo perguntando o que ia ter pro almoço, que ele também tava com fome. Só que quando chegamos em casa, o almoço não estava pronto e foi como se todo mundo soubesse o desastre que ia ser, porque assim que eu falei sobre o almoço pra eles, os três pararam embaixo do batente da porta da sala e a Bianca e o Benji olharam pro Matteo. Mas o Matteo nem me ouviu e foi logo sentando na mesa. Na cadeira, na verdade. E viu que não tinha prato, nem talher. Eu pensei em colocar os pratos ou pedir pra Bia me ajudar, mas você lembra o que aconteceu da última vez, não lembra? Então eu só falei pros dois tomarem conta do irmão, enquanto eu ia preparando o almoço. E eu não te disse o pior, esqueci o feijão no congelador e ele ainda estava congelado quando voltamos do templo, então sem condição de ter feijão, mas você sabe como eles adoram feijão, então eu enchi uma panela de água e comecei a ferver, enquanto esquentava o arroz no microondas e o óleo para o frango empanado. A salada já estava pronta, mas eu fiquei com medo do Matteo repetir o que ele fez da última vez, então nem coloquei ela na mesa. Na verdade, até tirei a toalha da mesa, quando chegamos em casa e a Bianca… Ai! Tão fofinha… do lado dele, acariciando a cabeça dele e dizendo pra ele que o almoço já ia ficar pronto, mas ele estava ficando impaciante. Dava pra ver pelo jeito que ele mexia a cabeça. Quando eu coloquei o maldito frango pra fritar, ficou espirrando óleo pra todo lado e até me queimei, olha! O feijão ficou uma porcaria, porque você sabe como fica quando ele ainda tá congelado e você tenta dar um jeito nisso, à força. A água na panela estava fervendo, mas aquele bloco congelado não se desfazia, aí eu fiquei esfregando uma colher nele, aí ficou daquele jeito. Não sobrou um grão inteiro na panela! Nisso, o Matteo já tinha se levantado e ficou abrindo e fechando todas as gavetas e portas do armário até que colocou um prato, garfo, faca e um copo no lugar onde ele senta na mesa, repetindo que estava na hora do almoço. Graças a Deus, eu consegui colocar tudo na mesa antes dele se servir de um copo de suco. Eu servi ele primeiro e ele até disse “obrigado”, mas nem olhou pra mim. Você sabe como ele é.
IV
Por duas semanas, tudo correu bem até que Matteo descobriu um interesse igual pelas atividades da irmã e passou a repetir para si que queria lutar também.
— Eu quero lutar! — dizia o menino todas as manhãs para ninguém em especial e quando lhe diziam que ele era muito novo ou quando Geovanna pronunciou um tirânico não! para ele, o menino retrucava, no mesmo tom de voz, impessoal e desatento:
— Eu quero lutar também.
Mesmo com quase 6 anos, nem Geovanna, nem Albuquerque conseguiam conversar com seu filho como conversavam com os outros. Às vezes isso era divertido, outras era frustrante e, às vezes, só era irritante mesmo e ouvir um Eu quero lutar! de manhã até a noite realmente os irritava, até que a questão foi resolvida numa noite chuvosa, com os travesseiros de testemunha.
— Mas e a natação? Ele vai sair da natação, então?
Geovanna estava sentada na cama, com os braços em volta das pernas dobradas e a cabeça pousada em cima dos joelhos.
— Você acha que ele vai sentir falta?
Albuquerque tinha a cabeça no travesseiro e as mãos, juntas, atrás da cabeça.
— Não fala assim…
Geovanna murmurou com uma voz profundamente triste.
— Eu não… — Albuquerque percebeu o peso que suas palavras tiveram e estremeceu — Não foi isso que eu quis dizer. Eu… ele quer lutar, ele cansou de nadar, só isso. Até o Benji cansou de nadar e quer jogar tênis agora.
— Pois é... Ele adorava natação! — retrucou Geovanna, abrindo um sorriso automático ao lembrar de seu filho mais velho nadando no último campeonato municipal — Mas você não acha melhor ver com o Lúcio?
— Ele vai dizer a mesma coisa da última vez. É um esporte por outro…
— Não é só um esporte!
À meia luz do abajur, Albuquerque viu os dentes da sua mulher brilharem e riu.
Ela o encarou com um olhar fulminante, lábios fechados e bufando.
— Desculpa, desculpa… tudo bem, não é só um esporte, mas é atividade física, de qualquer forma. Vai fazer bem pra ele.
Geovanna sabia que seu marido estava certo, mas foi ao consultório médico apenas para confirmar e não se surpreendeu. Ela sequer moveu um músculo do rosto quando Lúcio lhe disse, do outro lado de sua mesa de mogno, encarando-a por trás de seus óculos quadrados de armação fina, que não teria problema algum dele lutar.
— Mas eu ainda acho que ele deveria continuar com a natação. — Finalizou o médico, endireitando a coluna em sua cadeira de couro.
— E se ele não quiser mais ir?
— Bom, você tem que insistir. — Respondeu o médico. — Crianças como ele são teimosas, mas também são bem abertas, Ge. Ele pode até reclamar no caminho da piscina, mas uma vez dentro dela, vai nadar. A senhora sabe disso. Já aconteceu antes, não?
— Sim! — Respondeu Geovanna, pensativa, lembrando.
O médico curvou-se para frente feito uma morsa fazendo todas as molas da cadeira rangerem e sorriu:
— Viu? Você já tem experiência nisso… 6 anos, né?
— Quase isso!
Geovanna sorriu sem olhar para o médico, observando, ao invés disso, uma caneta azul largada ao lado de um bloco com folhas timbradas em cima da mesa . Ela já sabia de tudo o que ia acontecer naquele dia desde antes de acordar. Dentro de si, ela sabia de tudo isso e que precisava apenas se sentir, minimamente, no controle da situação, como se as imprevisibilidades não fizessem parte do seu dia a dia. Mas pensando bem, talvez o fato dela esperar as imprevisibilidades já fosse parte do seu controle da situação.
V
— E como foi?
Geovanna estranhou a pergunta e encarou com olhar indagativo o marido.
— O almoço. — Completou ele.
— Ah, foi tranquilo. O Matteo nem fez birra, nem nada. O problema veio depois, Al. Depois que todo mundo comeu. Recolhi os pratos com a ajuda do Benji e a Bianca chamou o Matteo para os dois treinarem os exercícios que eles tinham que treinar. Ela não precisava, mas treinou de qualquer jeito e eu comecei a lavar a louça. O Benji me ajudou um pouco, guardou umas coisas e chacoalhou a toalha no quintal, depois foi pro escritório, nos fundos, ler um livro e eu fiquei sozinha. E estava tudo bem, nem estava me sentindo tão cansada, já estava quase sem dor de cabeça quando ouvi um som… um… não sei explicar, era quase como um tapa coberto por algo, uma manta ou algo assim.
— Meio surdo?
— É, sei lá e aí um baque e, de repente, a Bianca começa a chorar. Eu me virei e corri até o terraço e adivinha o que eu vejo? A Bianca, chorando no chão, do outro lado do quintal, o Benji na porta do escritório com os olhos arregalados, assustado e, na minha esquerda, o Matteo encarando a Bianca, em pé, ofegante. Eu perguntei o que aconteceu e a Bianca começou a gritar que o Matteo chutou ela, porque ele tinha que acertar um… sei lá qual o nome, um golpe lá e a minha cabeça estava explodindo de novo, então fechei os olhos, ouvindo toda aquela gritaria, aí senti um puxão na camiseta e era o Matteo. Ele olhou pra mim, olhou bem fundo nos meus olhos e juntou as mãos na frente do rosto, dizendo que não era culpa dele. “Não foi minha culpa, mamãe, eu não fiz por mal”, olhando bem fundo nos meus olhos, Al.
Albuquerque a encarou de forma inquisitiva, como se perguntasse Ele olhou pra você?, processando lentamente o que a esposa tinha dito, mas Geovanna estava em chamas:
— Mas eu não estava bem e nem queria ouvir discussão alguma, então foi automático. Dei um beliscão no braço dele e mandei ele pro quarto. A Bianca também não parava de chorar e mandei ela pro quarto também, gritando, aí ela abriu o berreiro. O Benji, coitado, ficou me encarando da porta do escritório, como se estivesse esperando o que ia sobrar pra ele, mas eu não fiz nada. Só voltei pra cozinha, para os pratos e só então percebi que o Matteo tinha me encarado e não só isso, me chamou de “mamãe” e tudo, Al… Ele me encarou com aqueles olhos castanhos tão lindos, bem no fundo dos meus, me chamou de “mamãe” e eu tô tão feliz, Al. Eu tô tão feliz.
O Jackie chan na capa ficou o bicho!