Aproximação
1
Ele olhou para ela sentada na beirada da cama, no ponto onde duas linhas se cruzavam, formando o ponto mais baixo do colchão quando as pessoas sentavam nele. Com os ombros trêmulos, o rosto escondido nas palmas das mãos, que, por sua vez, escondiam-se atrás dos longos fios de cabelo loiro e ele só conseguia ver os seus cotovelos apoiados nas pernas enfiadas numa calça jeans azul marinho que ele sabia que deixava-a mais atraente do que qualquer outra roupa casual. No entanto, ela não estava atraente naquele momento e mesmo que estivesse, ele não teria notado; não porque estivesse encostado com o ombro direito no batente da porta, o rosto afundado com tanta força contra a madeira que impossibilitava-o de abrir o olho daquele lado do corpo, mas sim porque ele sentia quase tanto pesar quanto ela. Não um pesar voltado à condição que ela há pouco havia descoberto, mas um pesar pela incapacidade dele de ajudar ela. Ele havia falhado em seu dever como homem e a impotência que sentia fazia-o sentir o coração pesado, sua face dura como uma rocha e uma angústia que não o deixaria a não ser que ele tomasse alguma atitude. Mas qual? Ele não sabia e não conseguia pensar em nada, como se os agudos gemidos de sua mulher entrassem pelo seu ouvido, flutuassem todo o caminho até o cérebro, embaralhando neurônios e emoções e tão logo uma ideia nascia, ela se perdia entre as rajadas de neurotransmissores e as ondas do mar de elementos químicos que davam fôlego às ações de seu cérebro, deixando-o imóvel. Então descolou o corpo do batente da porta, sentindo a área que tocava a madeira esfriar imediatamente pelas tênues gotas de suór que se formaram na região enquanto ele a encarava e deu alguns passos curtos em direção à cômoda do quarto, onde havia um retrato com uma foto dos pais dele, um com os pais dela, perfumes, desodorantes, cremes para as mãos, creme para os pés, creme para o rosto, um protetor solar, um estojo de maquiagem, uma pinça, um cortador de unha e um cortador de cutícula, Minancora®, uma tabela de antigripais, dois sachês de sal de fruta, 2 chicletes, uma bala ardida que só ele chupava e uma dessas bolas de plástico desestressantes vendidas em qualquer lugar, tudo empilhado e organizado; a maioria dos objetos pertencentes a ela. Ele pegou a bola desestressante com a mão direita, apertou-a 3 vezes e desistiu, era pequena demais para suas mãos de ogro. À sua esquerda havia um enorme espelho colocado na mesma parede em que ficava a porta para a sacada do apartamento alugado 2 semanas antes do casamento; naquele momento levemente aberta com as cortinas fechadas esvoaçando ao toque de uma suave brisa fresca, que não soava nem refrescava. Ele se olhou no espelho. Quase conseguia enxergar o seu corpo inteiro. 1 metro e 89 centímetros de altura, 107 quilos, músculos notáveis, mesmo atrás de uma camisa de linho azul e gola mandarim, um braço esquerdo que já havia levado um tiro nas linhas de protesto contra as forças de segurança do governo unificado na praça Samaritana do centro da Capital e que tinha a estranha habilidade de prever chuvas; rosto quadrado, um cabelo liso marrom escuro penteado para trás com um bonito topete pequeno na frente assentado com cera modeladora todas as manhãs; o mesmo corte há 10 anos, o bigode bem feito e olhos escuros, profundos, porém quebrados. Olhos de alguém que já havia se revoltado e se tornado ponderado, alguém que aprendera a viver o momento presente, alguém que sentia prazer ao se perder em pensamentos cercado por árvores, chilreadas e silêncio, alguém que aprendera a amar o asfalto, mas não conseguia se ver muito tempo longe de mato para recuperar as energias, alguém que já havia descoberto o significado do amor e que não precisava de mais em sua vida. Ele estava feliz quando a primeira gravidez veio e algumas semanas depois, na ocasião do primeiro aborto espontâneo, ele ainda estava feliz. E continuou feliz enquanto eles se esforçavam para ter um filho e quando ela começou a se preocupar mais ou menos um ano atrás. Ele era a fonte que mantinha acesa a esperança que aquecia aquele apartamento periférico de paredes brancas imaculadas as quais ele sabia que ela imaginava rabiscadas pelas pequenas mãos de meninos e meninas carregando metade de seu código genético. Ela confidenciou isso a ele numa noite de inverno. Mas os primeiros exames vieram, as notícias foram pesadas, era a quarta vez que falhavam e ele sentiu a esperança apagar como um sopro. Ele virou o corpo, os resultados do exame ainda estavam deitados na cama à esquerda dela e o apartamento parecia esfriar, embora fosse primavera, o sol não estivesse nem perto de se pôr e não ter chovido há dias na Capital (3, para ser mais exato). De repente, ele inspirou profundamente. Parecia não respirar há horas e se aproximou da cama, esforçando-se para fazer o menor barulho possível. Apanhou o exame e o envelope, a chance era de 1 em milhares, mas havia uma chance e tão logo pensou nisso, olhando para as costas dela, ele se entristeceu, pois já havia dito isso dúzias de vezes, centenas talvez e seu sorriso singelo desapareceu numa face rígida e sem emoção. Ele se sentiu fraco e cansado, sem ideias, depositou sua mão direita sobre o ombro esquerdo que ele amava para sempre, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, na alegria e na tristeza e, num rápido movimento que ele sequer viu acontecer, ela caiu sobre o seu peito, chorando feito uma criança que perde o brinquedo favorito para os acontecimentos do acaso, sem poder entender e por mais que tentasse nunca poderia entender. Os gemidos transformados em choro angustiado; a voz fina quebrada e engrossando, conforme a respiração se tornava mais rarefeita; as lágrimas escorrendo de seu rosto como uma cachoeira e ele sentindo-as molhando o seu peito. Seu corpo inteiro tremendo naquele momento. As mãos dela em suas costas, as pernas se movendo freneticamente tentando encontrar um pilar, algo em que pudesse se segurar para respirar acima da superfície de desespero, desolação e pesar onde havia finalmente caído após meses de preocupação e fracassos. Ele tentou segurá-la, mas não sabia o que suas mãos tocavam; se seus braços, suas costas, pernas, bunda, coxas ou peito. Ela parecia apenas uma massa disforme de carne se chacoalhando e tremendo agudamente. Se os gemidos dela eram capazes de embaralhar os seus pensamentos, seu choro era uma bomba que dizimava suas sinapses.
Duas horas depois estavam deitados. Ele com os olhos bem abertos, encarando sem sentimentos o teto do apartamento, iluminado por um vago brilho azul de fim de tarde, quase roxo, quase escuro demais para manter as luzes apagadas. Por sua vez, ela estava no lado dele da cama e dormia em seu peito, o corpo todo à esquerda dele, os olhos fechados, porém ainda vermelhos, finalmente respirando naturalmente, levando quase 2 segundos para subir e quase 2 para descer, a mão direita sob a nuca dela e a esquerda sobre o oblíquo externo direito de seu corpo. As mãos dele encontravam-se pousadas sobre o corpo dela e só então ele pôde confirmar o que havia escutado em diversas conversas pelos corredores sinuosos de festas e jantares com amigos e colegas: ela havia engordado e onde antes sua mãos repousavam inanimadas, agora tinham o que apertar, como uma bola desestressante.
Ela parecia estar num sono profundo. Ele primeiro apanhou o seu travesseiro, depois moveu a mão esquerda dela e enfim o seu corpo, sendo rápido ao substituir seu trono rijo por um fofo travesseiro de penas, tornando-se bem sucedido em sua missão, pois ela não acordou ou pelo menos era o que ele achava. Sentindo fome, caminhou até a cozinha onde pensava em preparar o jantar, caminhando descalço, lentamente, como se carregasse toneladas nas pernas a cada pequena passada. O apartamento deles era bem iluminado, com a maioria das amplas janelas voltadas para o Sul e ainda assim, sentia um estranho frio ali dentro. Ele parou na sala, no exato ponto onde uma linha reta do quarto se cruzava com uma linha reta da cozinha e olhou para a sacada, atrás de uma porta dupla de vidro aberta apenas pela metade, naquele final de tarde. A cidade lá fora já tinha as luzes acesas, enquanto ele mergulhava cada minuto mais em escuridão.
2
Ela havia disfarçado muito bem, como toda mulher bem sabe fazer e havia acordado ao sentir o peitoral de seu marido ir embora. Agora, isolada do turbilhão de emoções que sentira, não tinha mais vontade de chorar. De fato, ela não sabia o que sentir, apenas não queria se levantar, nem fazer nada, nem ao menos pensar. Ela estava com uma dor de cabeça terrível e abrindo os olhos vagamente após afundar o rosto no travesseiro do marido, olhou as sombras na parede sumirem lentamente. Ela ainda sentia os olhos pesados. Deveriam estar vermelhos, feios e sentiu-os doer um pouco. Os lábios estavam secos e sentia uma pontada aguda no peito, que não era mais importante, mas ainda estava lá, presente. Na verdade, sentia-se leve e até um pouco aliviada com cada respiração transformando-se num suave suspiro. Quando o quarto ficou escuro demais para deixar as luzes apagadas, ela fechou os olhos e sentindo o cheiro dele no travesseiro, lembrou-se da primeira vez que ouviram Nick Drake juntos. Ela, então, era diferente; uma recém-formada historiadora, com muitos dados na cabeça, concentrando-se em números e figuras históricas para concluir sua pós-graduação, ao mesmo tempo em que trabalhava muito e, havia pouco, descoberto a habilidade antes inerte e desde então viva de se perder no momento presente. A contemplação e a paciência tornaram-se finalmente suas amigas e, em instantes, sua mente esvaziava-se, pronta para se entregar. Ele teve sorte de encontrá-la naquele momento, após suas lutas sociais, debates infrutíferos e protestos sem fim. E assim tornaram-se amigos antes de tudo, com alguns amigos em comum que não passavam muito tempo juntos, mas os dois passavam muito tempo sozinhos. Ela virou o corpo para a esquerda, para o lado dele da cama, onde havia o seu formato no colchão, sentindo as grossas coxas roçando uma na outra por baixo da calça jeans. Ela havia engordado, sabia disso, a aliança estava apertada em seu anelar esquerdo, símbolo de matrimônio desde os egípcios, ela pensou, tocando a aliança, enquanto lembrava de suas horas de estudo solitário. Ainda com os olhos fechados, lembrou a expressão da médica na primeira vez em que seu corpo falhou e quando vieram os outros. Ela (a médica) foi se acostumando conforme o tempo passou e a expressão em seu rosto deixou de carregar o pesar dolorido que sentia para se tornar cada vez mais natural, como um procedimento de rotina. Nenhum deles tinha mais de 3 meses, então qual o problema? Não tinha alma ou não estavam nos planos de Deus? Qual desculpa a poderia consolar? Sua fé restaurada estava abalada e o pilar em ruínas a fez inclusive esquecer a Ave Maria numa noite de inverno. Uma amiga havia lhe dito que era normal, mas isso foi antes dela descobrir a diabetes e antes dos quase dez quilos que ganhou. Ninguém mais a consolava. Elas apenas estavam lá, segurando suas mãos, afagando seus cabelos ou tocando em seus ombros. Uma chance em milhares a fez indagar o que em sua vida a faria se destacar numa multidão de milhares; sua carreira acadêmica talvez? Ela fora a pessoa mais rápida a dar uma volta na quadra de seu colégio quando tinha 14 anos de idade; uma vez vira uma baleia jubarte albina durante uma viagem pela Patagônia; fotografara um talacino quando morou na Nova Zelândia; um famoso historiador elogiou sua tese quando ela a apresentou numa conferência do Hemisfério Norte e seu primeiro concerto de piano fora aos 10 anos. Nada disso parecia ser suficiente e quanto mais pensava nisso, mais se encolhia, deitada na cama, como se sentisse cólicas, só que ela não sentia nada e pela primeira vez desde os 12 anos, desejou sentir cólicas apenas para poder distrair os seus pensamentos, focá-los em outra coisa, ainda que uma dor, que ela soubesse o que era e que soubesse fazer parar. Havia uma brisa suave de início de noite de primavera entrando pela porta de vidro do quarto. Ela conseguia ouvir as cortinas balançarem lenta e suavemente e seus pés estavam frios, fazendo-a esfregá-los um contra o outro. Ela sentiu a noite cair à sua frente, com o peso de mil elefantes e nenhum barulho vinha das ruas e se vinha não atingia os seus ouvidos. As ruas asfaltadas que ela sempre havia amado, desde que nascera num hospital do centro de Bainos, a cidade de interior onde seus pais moravam, e enquanto crescia numa rua movimentada de um bairro residencial periférico, chutava pinhas com os garotos e brincava de patins com suas amigas nas tardes de sábado e domingo, enquanto o mundo parecia explodir há quilômetros e mais quilômetros de distância em todas as direções. Ela conseguia se lembrar da primeira vez que viu jatos numa emergência intercontinental sobrevoar sua cabeça; tinha 7 anos e brincava de pega-pega com suas amigas que mal conhecia ainda nas primeiras semanas de aula da nova escola. Parou de tocar piano quando, num tratado com o Governo do Levante Leste se instaurou a Unificação da Sulamérica e anos depois foi uma das 17 milhões de assinaturas a favor do Pacto Richardson-Nabokov, ironicamente um dos nomes de seu escritor favorito, que seria homenageado em um de seus filhos se fosse menino. Ela pensava em Silvia para a menina, no entanto não veria isso. Não havia mais espaço para expectativas. Ela não era uma em milhares e as paredes de seu apartamento seriam para sempre brancas, estéreis, como ela. Ele cheira a pinheiros secos de outono, ela pensava enquanto suspirava sobre seu travesseiro amassado embaixo de sua cabeça pesada, sobre um corpo leve, que ela sentia nunca poder levantar, até sentir o aroma suave de bife vindo da cozinha. Ela abriu os olhos e vagamente conseguiu ouvir a gordura chiando em outro cômodo da casa. Ele só sabia fritar carnes e após imaginar o seu jeito atrapalhado na cozinha, metido num avental sujo, com fofos desenhos de ursos cozinhando, decidiu se levantar. Virou para o teto, abrindo os braços e as pernas, sentindo cada tendão esticar, acompanhado de uma sensação gostosa, sua barriga flácida roncou, a noite invadira o quarto por completo e, da janela, vinha um brilho oblíquo da cidade. Com rápidos movimentos, ela sentou na cama e se dirigiu para o lado de baixo do móvel, para onde os seus pés apontavam, olhou para a direita procurando sua alpargata no escuro, achando-as encostadas no armário marfim que dividia com ele. Deu uma arrumada instintiva no longo cabelo, sem se olhar no espelho e então foi para o banheiro. Com a luz acesa e a porta entreaberta, lavou o rosto e se encarou. Os olhos estavam vermelhos, mas ela continuava bonita e sabia disso, sempre fora. Era uma dessas raras pessoas que nascem abençoadas pelo anjo da beleza, encantando os outros com sua simples presença e quando ainda adolescente, imatura e birrenta, se incomodava com os elogios à sua beleza. Era bonita pela manhã, a tarde ou a noite, sensual quando cansada e encantadora quando entediada. Todos os olhares se voltavam para ela automaticamente, um poder que ela só aceitou depois de adulta, mas só aprendeu a usá-lo quando um pouco mais velha que isso. Ao olhar seu rosto molhado no espelho, observou os bolsões vermelhos embaixo dos olhos. Havia chorado como poucas vezes chorou e não conseguia se lembrar de uma vez que chorou na frente dele. Ponderou por alguns instantes como deveria ter ficado ao chorar. Será que continuava bonita? Será que ele continuaria a amá-la ainda que chorasse todos os dias? Ela conhecia sua própria beleza como ninguém, mas não se impressionava mais com ela do que uma pessoa normal se impressiona com o sol nascendo todas as manhãs, embora isso impressiona às vezes. Sua sensibilidade estava voltada para outras coisas e talvez fosse isso sua melhor característica. Ela também não precisava de mais, muito menos de muito mais.
Por um instante, lembrou de sua mãe, que tinha os mesmos olhos claros, amplos e sinceros.
3
Quando chegou à cozinha, ele estava de braços cruzados, olhando o bife atentamente, com várias rodelas de cebola dourando na gordura, sem o avental, esperando o momento em que pudesse virá-lo, como um caçador neandertal esperaria o momento de atirar sua lança na caça. Ele notou sua presença quando ela entrou no cômodo, mas seus olhos só se encontraram quando ela abriu a porta da geladeira para pegar uma garrafa de vidro com mais de um litro de água dentro e um copo no armário sobre a pia; sentando, em seguida, à mesa redonda da cozinha, em silêncio. Enquanto isso ele tinha uma ideia e perdia o tempo exato de virar o bife, finalmente sentindo recuperar o que havia perdido naquela tarde inesquecível de verão, pois é disso que são feitos os Homens; de ideias rápidas, pensamentos imediatos e aparentemente impossíveis, restaurando a luz que mostra o caminho, a essência ancestral que ele carregava em seu código genético e nunca saberia descrever, mas sabia sentir, a faísca que motivou a quebra de silêncio entre os dois:
— Vamos adotar.
E essa mesma faísca resplandeceu nos olhos verdes dela quando ela o encarou, surpresa, mas surpresa com ela, surpresa com a possibilidade, com o futuro, com o caminho que acabava de se abrir na frente deles, lentamente esboçando um sorriso entre suas bochechas rosadas. Com ele ela não se surpreendeu, porque dele ela não esperava, não aceitava, nada menos do que isso.
* * *